terça-feira, agosto 01, 2006

ANJOS CAÍDOS

Não esqueço o dia em que nos encontrámos pela primeira vez. Já tinha lido sobre ti, tinha ouvido falar, mas nunca visto com olhos de ver...
Inspirada na aura que te perseguia, desenhara-te, vezes sem conta, numa espiral de mil cores, desgovernada e emaranhada numa forma abstracta qualquer... sempre brilhante, reluzente de lantejoulas e purpurina, qual superstar... inacessível aos olhos dos fãs que, como eu, sempre são generosos com as aparências...
Estavas de costas, quando cheguei. Soube logo que eras tu - ouvi chamarem-te pelo nome – mas hesitei, incrédula na imagem que, enfim, via à minha frente... distorcida.
Aproximei-me, sem medo, muito embora o clarão ainda me ofuscasse os pensamentos. Aproximei-me na estéril esperança de que porventura o ruído dos meus passos fizesse com que te voltasses... Mas tu, indiferente...
Cedo te habituaras a essa lufa-lufa de chegadas e partidas, à fama mais do que ao proveito... e eu, expectante de ingenuidade, infantil de vaidade, queria e cria firmemente que olharias a qualquer momento... em vão.
Nua de vergonha, fingi então não saber seres tu. A histeria da fã volveu-se na impavidez da espectadora. Serena e sóbria apresentei-me, rendida ao meu currículo vazio.
Recordo agora o teu esgar de indiferença. Armada de ousadia, decidi enfrentar o teu desprezo. Fiz-me à estrada como pude e turvei, à força, todas as imagens que trazia, ansiosas, pelo caminho. Ciente dos meus dotes de actriz, propus-me criar em ti a ilusão de que seria diferente do resto. E consegui. Acreditaste, pensei. E decidi-me a ficar sem prazo...
Olhando para trás, vejo afinal que fui a mera personagem de um filme a que já assistiras milhentas vezes... Uma personagem igual a tantas outras que aqui aportam, crentes na sua e na tua diferença. Apenas mais uma a invadir a tua baía....
Hoje, despojados de todos os encantos, longe já dessa paixão ensandecida que nos mascarava os defeitos...assim, sem artes nem manhas, entre a parede e a espada desta realidade que sempre nos sobressalta, nua e crua, somos, vejo-o nitidamente, dois anjos caídos.
Nem o brilho desse oriente sonhado era mais do que o reflexo dos néons que em ti proliferam, nem eu era assim tão desigual como te fiz crer. Caímos ambos... tu da tua exuberância balofa, eu, da minha sobranceria forjada...
Desilusões à parte, o certo é que ainda cá estou. Limpaste-me do rosto a caracterização, roubaste-me os adereços e fizeste de mim mulher... de corpo e alma!
Ficar-te-ei eternamente grata, Macau. Muito obrigada!

3 comentários:

Anónimo disse...

Os anjos em Macau, quando caem, nem sempre se levantam. A maioria das vezes porque ninguém estende a mão. Outras, porque os anjos caem com facilidade de tanto tropeçar em busca de uma realidade que inexiste. Em Macau, andar de cabeça erguida e ver o que nos rodeia é uma atitude difícil de manter: as aparências sobrepõem-se, e os anjos caem, e caem, e caem...

Yāt go yàn 一個人 Yī gè rén disse...

Entendi o recado e agradeço o conselho amigo, mas a verdade é que quero crer, talvez por ingenuidade ou pura teimosia-admito-o- que as aparências iludem de facto...
Quero acreditar que sou mulher de César,sem ter que parecê-lo,mesmo numa terra como Macau...
Creio, a cada dia mais, que está nas nossas mãos fazer deste mundo em que vivemos, um mundo melhor, mais autêntico, mais bonito...utópico, talvez, e isso que importa?...
Acreditarmos em nós, no nosso valor, ter amigos e uma família que o reconhece incondicionalmente é o bastante para calar as “bocas do mundo” e fazer da nossa vida uma existência com sentido, mesmo que não seja o mais convencional...
E como sói dizer-se em bom português: “os cães ladram e a caravana passa”!

Anónimo disse...

Agora que já sabes da minha mão estendida,decerto vais agarrar todas as outras que vão surgir no teu caminho. Sempre estiveram lá, à espera do teu olhar. Vá: ergue a cabeça. Outros anjos se levantaram, acredita. Beijinhos.