segunda-feira, julho 24, 2006

Em caminho

Como quem atravessa de Macau para a Taipa, vejo-me na ponte contigo, mero acaso artilhado, enquanto alguma coisa rebenta e o betão se esfarela. Milhares de milhões de pequenas partículas de areia e pó a dançar no ar, uma confusão de estrelas suspensa no tempo...a água já não eram pérolas, e nasceu-me um deserto nos pés. Caminhei mas o corpo já não era o meu, e em vão arrastava-se na areia. A noite ficou ainda mais escura, e a meta dos prédios sumiu-se por entre nós. Ainda tentei, mas não havia raciocínio possível a fazer a esquadria por cima do cenário, e tu, não vias o que eu via, há lugares que são só nossos... Deve ter sido uma fracção de segundo, uma eternidade, o álcool misturado com a pele e o cansaço. Afinal o coração era meu, e o deserto dos afectos a luz de cabeceira. Só pode ser... olho para dentro e para o fim do arco dentro do meu coração, e vejo-te calado a anunciar o fim. A memória acorda num repente e sem querer sei a resposta: “No deserto, vi uma criatura nua, brutal, que de cócoras na terra tinha o seu próprio coração nas mãos, e comia... Disse-lhe:”É bom, amigo?” “É amargo – respondeu, amargo mas gosto porque é amargo e porque é o meu coração.”*

* Stephen CRANE (1871-1900), tradução poética de Herberto Helder (1996) em Poesia Toda, página 486

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